22 de fev. de 2009

Cultura, culturas, cultura popular e educação - Carlos Rodrigues Brandão ( entrevista)

Cultura, culturas, cultura popular e educação

Nome: Carlos Rodrigues Brandão
Atuação: Professor e pesquisador da UNICAMP. Atua na área de Antropologia com ênfase em Antropologia Rural, Antropologia da Religião e Antropologia e Ambiente, atuando principalmente nos temas: cultura, cultura popular, educação popular e educação ambiental.
Obras: Autor de diversos livros, dentre eles:O que é educação popular. São Paulo: Brasiliense, 2006.A Educação Popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002. v. 1.A Educação como Cultura. 3. ed. Campinas: Mercado das Letras, 2002. v. 1.

As culturas não são desiguais, não há uma hierarquia, as culturas indígenas não são culturas rústicas, ou sertanejas, empobrecidas e as culturas rústicas e sertanejas não são culturas civilizadas empobrecidas. Elas são culturas diferenciadas, a relação entre elas é uma relação entre diferenças.
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Entrevista com Carlos Rodrigues Brandão
Salto: Qual o sentido de cultura e cultura popular?
Brandão: Cantos, danças, pinturas rupestres ou então, fotografias digitais, crenças, filosofias, visões de mundo, tudo aquilo que nós construímos com as imagens, com os símbolos, com os significados, com os sentidos, com os saberes, os sentimentos, que nós, inclusive, partilhamos quando habitamos uma cultura. Tudo isso faz parte de uma outra dimensão da cultura que nos acompanha e nos torna humanos. Nós não apenas criamos cultura enquanto seres humanos, quando aprendemos a nos colocarmos frente a natureza e a transformá-la. Mas também estamos rodeados, cercados, o tempo, todo, de símbolos, de significados.
O que eu tenho de meu? O que nós temos de nosso para mostrar como o que é nosso, como aquilo que nós criamos e que nos faz iguais a ingleses, a iranianos, a mexicanos e argentinos, porque todos de uma mesma espécie humana, mas diferentes, porque é uma gente de um lugar, socializada dentro de uma língua, com costumes, com gramáticas sociais, com visões de mundo, com tradições culturais próprias. O que nós temos para mostrar, em grande medida é, primeiro: a cultura do lugar, a cultura paranaense, cultura mineira, cultura carioca e, depois, dentro de cultura do lugar, as diferentes culturas que eu posso vivenciar, em Belém do Pará, em São Luiz, no Rio de Janeiro e em qualquer outra cidade.
As culturas não têm todas o mesmo destino, não devem seguir todas a mesma trajetória, assim como as pessoas que nós convivemos não estão todas condenadas a viverem de um modo semelhante ou igual, a estudarem de um único modo, a crerem num único Deus, e da mesma maneira. O que faz a imensa riqueza da experiência humana é que, ao contrário dos gorilas, ou dos chipanzés, nascemos seres de uma mesma espécie com diferenças inexistentes, dentro daquilo que, antigamente, se chamava de raças. Nós somos seres únicos, somos absolutamente idênticos do ponto de vista de identidade, do ponto de vista de inteligência e de desenvolvimento, somos potencialmente de uma mesma espécie. Por outro lado, nós hoje em dia compreendemos que, cada pessoa, isso vale inclusive para as crianças e os jovens de uma turma de estudante, cada pessoa, cada uma de nós, quem quer que seja, independentemente de quem seja, do ponto de vista de qualquer classificação ou preconceito, é uma fonte absolutamente original, peculiar e única de conhecimento, de saber, de vivência, de experiência. E se isso é verdadeiro com uma pessoa, diante de outra pessoa, na relação entre as culturas é mais ainda. As culturas não são desiguais, não há uma hierarquia, as culturas indígenas não são culturas rústicas, ou sertanejas, empobrecidas e as culturas rústicas e sertanejas não são culturas civilizadas empobrecidas. Elas são culturas diferenciadas, a relação entre elas é uma relação entre diferenças.
As nossas culturas populares, que também são plurais, muitas vezes nós usamos essa palavra no singular, como uma espécie de um grande guarda-chuva para falar do povo brasileiro em oposição a essas culturas eruditas, acadêmicas, e assim por diante. Mas, na verdade, tal como acontece com as línguas, que são uma dimensão da cultura, dentre outras, elas são plurais, elas são múltiplas. Quantas línguas são faladas no Brasil? Muita gente pensa, até ensina na escola, que seriam 7, 8, 10 línguas: português, espanhol, italiano dos imigrantes, polonês, alemão, ucraniano, mas só línguas indígenas nós temos 175, nós somos um país multiétnico, multilingüístico, multicultural. A grande riqueza da experiência humana é que somos iguais, mas somos absolutamente diferentes naquilo que nos iguala.
Salto: Qual o sentido das festas nas culturas populares?
Brandão: O lado da festa em nós existe porque nós não sabemos viver sem retornar, retomar essa experiência da gratuidade, da espontaneidade, do estar com o outro, não para produzir alguma coisa, uma utilidade com o outro, como a gente faz quando está trabalhando, mas para conviver, para conviver através de símbolos, através de significados, através de beleza, através do canto, da dança, da dramatização. Mas existe um outro lado na festa, no ritual, no celebrar e esse talvez seja o mais antropológico, nós somos também a única espécie que aprendeu a sobreviver porque aprendeu a tirar algo de si e destinar ao outro. Por exemplo, as mães chimpanzés cuidam dos seus filhinhos com muito esmero, mas quando eles desmamam e começam a se bastar para si, elas os abandonam. Eles vão conviver com um bando. E aquela mãe vai se preparar para ter uma outra cria e repetir o mesmo cuidado. Nós somos a única espécie que, desde a aurora da humanidade, desde que nós nos tornamos humanos, toma alimentos e os destina a outras pessoas. Nós somos a única espécie que criou formas de relação entre pessoas que são permeados por leis sociais, que nos obrigam a um contínuo “intertrocar”, entre nós, serviços, prestações de serviços, bens, que muitas vezes nós chamamos de presentes, mensagens, significações, saberes. Numa conversa, num momento de festa na escola, numa formatura ou durante a recepção de uma nova turma de alunos, nós estamos, simbolicamente, no que comemos, no que bebemos, na maneira como decoramos o ambiente, na maneira pela qual alguém vem e diz alguma coisa. Nós estamos entremeando essa reciprocidade através da qual nós nos tornamos humanos, e criamos significados.
A festa é o momento em que uma pessoa, um par de pessoas, de preferência uma família, uma parentela, uma comunidade, um grupo de amigos, ou seja lá quem for, às vezes até uma multidão, se reúne para viver o momento em que o que se troca não são tanto bens, bens materiais, coisas utilitárias, como numa situação de trabalho, mas trocam-se afetos, símbolos, significados, identidades, estimas. Isso se faz com a música, com o canto, com a dança, com as fantasias, com as roupas, com as dramatizações.
Salto: E no caso das festas populares? Qual seria a marca dessas festas, as relações entre tradição, enigma a perpetuação e, ao mesmo tempo, renovação de rituais, de celebrações e comemorações?
Brandão: Quando chega o Natal aqui no Brasil, uma imensa quantidade de pessoas, lastimavelmente, vive um Natal de shopping, onde há sempre um Papai Noel, que é fotografado com crianças, uma árvore de natal coberta com algodão para fingir que aquilo é neve, a figura das renas e uma série de músicas muito bonitas: “Noite Feliz”, “Jingle Bells”, que de repente são formas de celebrações bonitas, mas que vêm de outro mundo. São universais, esparramam-se por boa parte, pelo menos do mundo cristão. Enquanto isso está acontecendo em Copacabana (RJ), Morumbi (SP) ou num bairro de Belo Horizonte (MG) e, muito provável que em um número enorme, seria incontável, de periferias de cidades pelos Brasis afora ou então, de lugarejos rurais, às vezes, inclusive, muito distantes uns dos outros. Santa Catarina, Pernambuco, Maranhão, e Sertão de Minas, pequenos grupos de pessoas, que são artistas, tocam instrumentos, violões, violas, pandeiros, caixas e que vêm com roupas com fitas, às vezes até acompanhados de uns palhaços mascarados. Essas pessoas vão de casa em casa. Não apenas cantando, não também representando qualquer coisa, mas vão anunciando às pessoas da casa o momento do Evangelho cristão que é o momento do nascimento de Cristo. E eles se apresentam como os Santos Reis, os emissários Santos Reis. Nós estamos falando de uma folia de Santos Reis. De um ritual, de uma celebração que é parte do que nós chamamos, tradicionalmente, catolicismo popular ou religião popular ou religiosidade popular e que tem algumas características muito especiais. Primeiro, que é absolutamente nosso, ainda que talvez, na sua origem, tenha vindo de Portugal. Em segundo lugar, é alguma coisa muito marcada do que nós chamamos de tradição popular.
O que nós vemos na folia? Se uma pessoa chegar num momento culminante da Folia de Santos Reis, que é dia da festa de Santos Reis, normalmente no 6 de janeiro. Se a pessoa vai com um olhar muito apressado, ela vai ver uma festa parecida com qualquer outra, ela vai ver bandeirinhas, lugares ornamentados, comilança, pessoas na cozinha fazendo comidas, umas pessoas cantando, outras brincando, meninos, um homem vestido de palhaço, correndo atrás de crianças, tudo fica meio parecido com outra festa qualquer. Se ela olhar mais de perto, ela vai ver uma característica muito própria das culturas populares, a que marca uma diferença entre elas e as nossas culturas, digamos, mais eruditas, mais urbanas, é que normalmente são festas para todos, são festas abertas, você não precisa pedir licença para chegar e participar. Vamos dizer que a pessoa que chegar à festa converse com um mestre, um coordenador do grupo em geral, o artista mais velho, que até forma as outras pessoas que cantam, que tocam instrumentos. O mestre vai dizer, primeiro, que aquilo é muito antigo, muitas vezes até ele vai desfiar uma fileira de parentes: “Ah! Isso foi meu bisavô que passou para o meu avô...”. Isso é muito comum não só aí na folia, mas em várias outras festas, cerimoniais, rituais religiosos ou não, aqui no Brasil das culturas populares. Às vezes, até ele vai associar os acontecimentos muito antigos, ou ele vai dizer que veio do começo do mundo, ou ele vai dizer que isso veio desde quando os reis magos, há milhares de anos, foram visitar o menino Jesus. Então, nós fazemos isso numa memória daquele acontecimento. Ele pode até dizer que nós representamos os três Reis, ou, então, nós somos os três Reis, estamos a caminho de Belém para visitar o menino Jesus. E ele vai, inclusive, demarcar essas situações, porque é preciso ter um conhecimento da folia, aí são as pessoas que eu treinei, que eu ensinei, aqui está meu filho, está meu neto, meu cunhado, participam do meu grupo, eu mesmo sou folião há 30, 40 anos. Mais qualquer pessoa pode vir para pagar uma promessa, acompanhar, pode participar da festa, pode participar. São acontecimentos cerimoniais permeados de símbolos, de significados próprios de um povo que a gente não pode esquecer que é, normalmente, povo num duplo sentido da palavra. Povo, porque é gente camponesa, gente operária, são as pessoas que muitas vezes, quando chegam ao Ensino Médio, em termos da formação escolar, já é muito. E povo no sentido de que, sobretudo, numa sociedade desigual como o Brasil, uma sociedade ainda tão marcada por desigualdades sociais e por exclusões é, normalmente quem ficou na periferia, quem ficou na periferia, é gente posta à margem.
Daqueles que justamente criam e recriam os Quilombos negros, ou, então nas nossas comunidades rurais camponesas pobres, ou então, nas nossas periferias pobres das cidades, essas inúmeras tradições que são populares nesse duplo sentido, porque são culturalmente um fio ao longo da história de gentes do povo, do Brasil, e populares porque em grande medida são experiências vividas por pessoas mais pobres, muitas vezes até mais postas realmente à margem numa sociedade tão brutalmente excludente como a nossa.
Salto: Apesar mídia não enfocar muito essas manifestações, não valorizar e muitas vezes simplificar, de certa maneira, elas sobrevivem, revivem e se renovam. Como entender esse processo todo?
Brandão: Existem explicações históricas e teorias, algumas até muito elaboradas e complicadas, para isso. Há pouquinho tempo, eu vi um documentário na televisão mostrando uma cidade muito isolada na Sibéria, na Rússia, onde há uma igreja, mais ou menos em ruínas, muito antiga. E a igreja absolutamente cheia de fiéis e o comentarista diz: “Após 70 anos de proselitismo ateu em toda a Rússia, nem bem ele saiu deu lugar a um novo tipo de sociedade. Muito do que estava reprimido, sepultado, proibido, como tradições religiosas ou outras tradições do povo ou povos da Rússia reemergiu com uma força inacreditável. Nada mais repleto de gente do que as igrejas e nada mais praticável nas igrejas do que um cristianismo russo muito tradicional, como se ele viesse do século XIX ou de outros séculos, e rompesse de novo em pleno século XX. E esse fenômeno é universal. A maneira mais simples de compreender isso é ouvindo as próprias pessoas do povo. Quando a gente vai conversar com uma mãe-de- santo, com um artista do barro do Jequitinhonha, um mestre da Folia de Santos Reis, com um dançador de Congo, com um capitão de terno de Moçambique, essas pessoas de Norte a Sul do Brasil, homens e mulheres praticantes dos mais diferentes tipos e modalidades de cultura popular, cultura material, artesanato, cultura imaterial, se vocês quiserem, que vai desde o cordel até as festas populares do Bumba- Meu-Boi, eles quase sempre vão dizer: Isso é uma tradição que vem de muito longe, isso é alguma coisa que meu avô ensinou para o meu pai, meu pai ensinou para mim e eu quero ensinar para os meus filhos, para eles ensinarem para os netos. Na inocência dessa genealogia, essas pessoas estão quase que produzindo uma teoria popular da própria preservação e resistência das culturas populares. Eles até poderiam dizer: “nós não ganhamos nada com isso, ao contrário, nós até gastamos para que isso continue a ser realizado”. Quantas vezes eu mesmo participei de situações no sul de Minas, mas também em Goiás e em regiões da Serra do Mar, em São Paulo, e que uma pessoa, por uma promessa feita a um santo ou, então, simplesmente pela alegria de ser um festeiro daquele ano, se endivida por 5 ou 6 anos, financeiramente, por promover uma festa, para recriar naquele ano. Apesar de toda a ajuda dos vizinhos, parentes, porque há toda uma partilha muito bonita, perdida nos nossos edifícios, nas nossas cidades, mas muito viva ainda nesses mundos populares.
A submissão de povos indígenas, de afrodescendentes, de nossa gente do povo aos poderes senhoriais, os poderes, não só econômicos, mas também políticos e também da mídia, nunca se realizou completamente, não se realizou com os escravos, não se realizou com nossos povos indígenas, não se realiza com a nossa gente do campo, com a nossa gente migrada para a cidade. Existe tanto no que é sagrado, como no que é profano, aquilo que é religioso, como aquilo que é apenas festa e alegria, um desejo, uma libido, uma vontade, uma vocação de continuar pondo na rua, fazendo existir aquilo que é próprio, aquilo que é deles, aquilo que traduz a nossa maneira de ser.
PAPEL DA ESCOLA E DA MÍDIA
Salto: Qual seria o papel da escola e da mídia, se elas pudessem trabalhar a favor dessas classes populares, dessa cultura popular, no sentido de estar junto, de promover, de incorporar, de se reconhecer...
Brandão: Essa é uma questão muito complexa. Eu poderia responder a você com a minha própria experiência. Eu poderia dizer o seguinte: Alguns dos melhores aprendizados que eu tive e sigo tendo a respeito de culturas populares, inclusive de outros povos, de lugares onde eu nunca fui, foi através da mídia, foi através de vídeos, de filmes, de programas culturais na televisão. Eu mesmo tenho uma coleção de discos de músicas etnográficas, de povos indígenas do Brasil. E de outros lugares, vários do mundo, músicas indígenas, de camponeses. Não fossem esses recursos, eu nunca ouviria essa música. Algumas dramatizações de culturas populares, às vezes, prestam um serviço muito grande, porque trazem e colocam a frente milhões de pessoas alguma coisa que é uma retradução de experiências culturais. Mas, por outro lado, muito das piores coisas que eu tenho visto acontecerem no mundo das culturas populares também, através, não só da mídia em si, mas de uma associação entre o interesse de apropriação das culturas populares como mercadoria, esse que é o problema fundamental. É, misturada com uma espécie de domesticação midiática das culturas populares, há uma tendência, por exemplo, a tomar grupos de Bumba-Meu-Boi, de São Luiz do Maranhão, que secularmente se apresentam em suas comunidades, em dias próprios e com toda uma significação ritual, e colocar aquilo na porta do hotel. Ou colocar aquilo para ser filmado pela televisão e, de repente, ser cortado e aparecer em 3 minutos, como se tudo aquilo acontecesse segundo o olhar do programador da televisão. O que nós chamamos transformar o ritual, o que uma comunidade cria e vive, alguma coisa que ela cria a respeito dela mesma para ela mesma vivenciar num espetáculo fragmentado, deslocado, muitas vezes até perdido do seu sentido original para uma platéia assistir.
Salto: E qual o papel da escola?
Brandão: Então, desde o ensinar uma criança a falar “direito”, que era esquecer a maneira de se falar para aprender uma forma letrada e única, de uma brasilidade inexistente, até esse apagamento das nossas tradições populares em nome, muitas vezes, de uma incorporação de valores universais que nos pareciam até desfigurados na nossa educação. Isso tudo realizou uma espécie de divórcio, de alheiamento entre o Brasil e as nossas culturas. Aliás, isso não aconteceu só aqui, de muitos modos, aconteceu em muitos outros países, é típico de todo um momento de visão, de progresso, de desenvolvimento, de branqueamento, de ocidentalização que estava muito compatível com aquilo que eu falei no começo.
Isso foi feito de acordo com a visão de que as culturas indígenas, as culturas de tradição africana e culturas populares eram culturas do passado, eram culturas atrasadas, eram culturas a serem superadas em nome de uma cultura branca, letrada e erudita.
É muito interessante que, enquanto isso está sendo realizado na educação brasileira, grandes nomes da nossa literatura, da nossa música, da nossa poesia, das nossas artes plásticas estão justamente se voltando para as culturas populares. José de Alencar, o romantismo brasileiro, a descoberta dos nossos índios, Euclides da Cunha escrevendo Os Sertões e trazendo para o Brasil todo o modo de ser e viver das gentes dos fundos da Bahia, mais tarde Mario de Andrade saindo para o Brasil, pesquisando com equipamentos precaríssimos os nossos negros, os nossos indígenas, as nossas músicas e festas tradicionais.
O movimento que vem do século 19, de redescoberta das nossas raízes, das nossas maneiras indígenas, negras, populares de ser, mas de certa maneira impermeável à educação.
Hoje nós estamos vivendo um momento, não só aqui no Brasil, mas em vários lugares do mundo inteiro, nós descobrimos que a única maneira de nós nos universalizarmos, uma palavra melhor do que globalizar é estabelecermos diálogos entre nós e com aquilo que nos é próprio e peculiar, que está na raiz da nossa identidade, da nossa maneira de ser.
Preservar culturas, eu tenho um pouco de dificuldade de lidar com essa expressão, às vezes eu gosto de dizer que uma cultura que precisa ser preservada para viver já morreu. O que eu quero dizer, uma das idéias fundamentais de quem estuda culturas, aí num sentido mais amplo, culturas populares, é que ou elas têm a sua própria vida ou não têm vida nenhuma, ou seja, toda a cultura de um povo indígena, de um terreiro de candomblé, a de uma comunidade rural do São Francisco, ela é viva e dinâmica, enquanto ela se faz de dentro para fora, enquanto ela se cria, enquanto ela é autônoma, enquanto ela faz os seus próprios rumos. Quando ela começa a estabelecer vínculos, não de diálogos, que é uma coisa boa, inclusive com a própria escola, mas de dependência da mídia, do mundo empresarial, da prefeitura, ela está assinando o seu testamento.
Então, o que eu acho que nós podemos fazer é criar condições para que, de uma maneira autônoma, criadores de cultura popular, desde uma pessoa individualmente até toda uma comunidade, possam recriar e possam viver da maneira mais livre e autêntica possível as suas próprias experiências de festas, de criações de cultura imaterial e assim por diante. Eu costumo dizer que se uma escola só se lembra das culturas populares na semana de 22 de agosto, é melhor não fazer coisa nenhuma.
Partir dessa visão “aulista”, monológica de um professor ensinando aos alunos, quem sabe dando a quem não sabe, aquilo que Paulo Freire chamava de uma educação bancária, para uma educação dialógica que parte inclusive daquele princípio de que eu falava, de que cada criança, cada pessoa é uma fonte original de saberes, é uma experiência única e irrepetível de saberes. Ao mesmo tempo e no mesmo movimento, estabelecer uma relação diferente entre a escola e a comunidade. Eu sei que isso é muito difícil, algumas escolas conseguem e ganham muito com isso, que é tomar o lugar social em que uma escola está, numa zona rural, uma periferia de cidade, um lugar qualquer, um bairro, não como aquele lugar em que a escola acidentalmente está, mas como aquilo que eu chamo uma comunidade de acolhida. Eu costumo dizer que antes de a escola ter vindo para cá, aquele lugar já existia, e se ela for embora ele vai continuar existindo, a escola passa, pode ter uma vida longa e Deus queira que tenha, mas aquela é uma comunidade que tem uma vida própria.
A idéia é de uma cidade educadora, de fazer com que todo o bairro, toda pequena cidade, até mesmo uma grande cidade, se transforme num múltiplo, polissêmico lugar de experiências de inter-trocas de saberes de valores, de experiências de vida, de culturas, de culturas populares. E fazer com que a escola deixe de ser esse lugar trancado, que esse cenário de aulas só para os alunos se transforme num centro irradiador de cultura em diálogo constante com a comunidade.
O que nessa comunidade, nesse bairro, onde nós estamos, nessa periferia, nessa zona rural, o que é vivido pelas pessoas? Isso é cultura popular viva. Não tem mais Congada, não tem Folia de Reis, mas tem hip-hop, periferia de São Paulo, bota então hip-hop. Então, o que as pessoas estão vivendo, no seu cotidiano, no seu pensar, no seu sentir, no seu vivenciar, nas suas festas, nas suas celebrações, quantas coisas lindas estão acontecendo numa casa, numa Igreja, às vezes, até num bairro, num campo de futebol, a vida cultural de uma comunidade e a escola, às vezes, é impermeável a esses acontecimentos. Não há comunidade, não há lugar nosso que não tenha os seus criadores populares de cultura, é preciso tentar incorporar a experiência cultural que se vive na escola com a experiência que se vive na comunidade local.
Ou seja, é essencial não trazer, de forma artificial, culturas populares para numa semana, num dia, colocar no palco da escola, mas interagir, integrar as várias dimensões das diferentes culturas brasileiras como coisas vivas que, justamente, existem e são significativas porque estão em permanente diálogo.
Então, o que eu estou sugerindo é que a escola não estabeleça essa separação entre o curricular, que é o erudito, o escolar, o normativo, o utilitário, o que realmente importa, do extracurricular, aquilo que entra pela porta do fundo, tem um dia, uma semana para aparecer e depois sumir, porque outra coisa vai ocupar o seu lugar. Mas que haja uma integração e que, de repente, pessoas da comunidade, sábios do lugar, memória da nossa gente que tem uma outra história para contar, o que é ser carioca, o que é ser mineiro, o que é existir numa escola da Lapa ou então em São Luís do Maranhão, ou então, na beira do Rio São Francisco, tudo isso que é não só uma cultura popular folclórica, mas uma experiência cultural enraizada na vida das pessoas, que dialogue com a própria escola.

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